Capítulo 4 - O Peso da Escolha


O vento soprava devagar quando Lívia se acomodou novamente à sombra da mesma árvore. O diário, repousando sobre suas pernas, estava quente como se tivesse ficado ao sol, mas ela sabia que não. Ao abri-lo, uma suave fragrância de terra úmida e madeira recém-cortada subiu aos seus sentidos.

As páginas revelaram uma nova entrada:

"Dia 3 — Conheci dois irmãos. Suas mãos carregavam histórias diferentes, mas seus olhos… esses escondiam algo mais profundo."

Lívia respirou fundo e começou a leitura.
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Relato do explorador:

"Eu caminhava por uma planície extensa, onde a terra era fértil e o ar cheirava a trabalho recém-feito. O silêncio só era quebrado pelo balido de ovelhas ao longe e pelo som ritmado de alguém cavando.

Foi ali que os vi.

O primeiro, de braços fortes e pele marcada pelo sol, inclinava-se sobre os sulcos da terra. Os movimentos eram precisos, quase duros. Ele parecia conversar com a terra, mas ela não respondia com a mesma suavidade.

O segundo, alguns metros adiante, guiava pequenas ovelhas brancas. Ele tocava cada uma com carinho, como quem entende o valor da vida. Seus olhos sorriam antes do rosto.

Aproximei-me sem pressa. O pastor me cumprimentou primeiro:

— Sou Abel.

O agricultor olhou brevemente e disse:

— Caim.

O peso em sua voz era diferente, como se trouxesse dentro de si algo que ainda não havia nomeado.

Sentamos à beira de um pequeno monte, onde o vento trazia o cheiro de folhas secas.

Abel falou primeiro:

— Hoje levaremos nossas ofertas ao Senhor. Quero que Ele receba o melhor do meu rebanho. É tudo que posso dar.

Caim permaneceu em silêncio por alguns segundos. Depois murmurou:

— Também levarei o fruto do meu trabalho.

Percebi que havia algo tenso em suas palavras. Algo que ele tentava esconder até de si mesmo."

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Lívia virou a página lentamente.
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"Quando chegou o momento da oferta, caminhei com eles até um lugar alto. Cada um colocou seu presente diante de Deus.

A expressão no rosto de Abel era humilde, quase leve. A de Caim… pesada como nuvem antes da tempestade.

De onde eu estava, pude sentir que Deus recebeu o presente de Abel com alegria. Havia sinceridade, entrega, coração.

Caim percebeu. E, naquele instante, sua postura mudou. Os ombros se fecharam. O rosto endureceu. Os olhos, antes firmes, se tornaram escuros.

Deus falou com ele, com uma voz que mais parecia um cuidado silencioso:

— Caim, se fizer o bem, será aceito. Mas o mal está à porta… cuide para que ele não domine você.

As palavras chegaram até mim como um aviso que atravessa gerações.

Mas o olhar de Caim continuava distante.

Mais tarde, Abel me chamou para caminhar um pouco. Ele parecia preocupado:

— Meu irmão anda estranho. Não sei o que fazer… só posso orar por ele.

Antes que eu respondesse, ouvimos Caim chamá-lo. Abel sorriu, achando que finalmente poderiam conversar.

Observei os dois se afastando pelos campos. Abel caminhava com confiança. Caim… com passos rápidos demais."

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Lívia sentiu um arrepio leve. Continuou.
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"Não ouvi gritos. Apenas o silêncio repentino, pesado.

Corri até o campo. Encontrei Caim sozinho. O chão ao redor contava a história que ele não dizia.

Ele não me olhou. Não chorou. Apenas sussurrou:

— Não consegui…

Mais adiante, a voz de Deus ecoou. Não era de ira, mas de lamento:

— Onde está Abel, teu irmão?

Caim respondeu:

— Não sei… sou eu o guardador do meu irmão?

A dor na pergunta cortou o ar como vento frio.

Deus então explicou a Caim que suas escolhas o acompanhariam dali em diante. Ele viveria como errante, lembrando sempre que a inveja nunca leva à vida.

Mas mesmo assim… Deus colocou um sinal sobre ele. Um gesto de proteção. Um gesto de amor que o mundo talvez nunca entendesse.

Eu o vi se afastar devagar. Um homem carregando o peso do próprio coração."

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No final da página, havia um pequeno desenho:
duas marcas no solo, uma plantação e um cajado, separadas por uma longa sombra que se estendia entre elas.
Abaixo, uma frase escrita em letra firme:

“A escolha que fazemos dentro do coração molda o caminho que deixamos no mundo.”

Lívia fechou o diário com cuidado, segurando-o junto ao peito.

— Eles estiveram com Caim e Abel… ou talvez fossem Caim e Abel — murmurou.

O vento soprou entre as folhas, como se carregasse a memória do que ela acabara de ler.

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